terça-feira, 1 de junho de 2010

Gardunha - quem te viu e quem te vê !

Foi em "O Jornal", dirigido por Joaquim Letria, que fiz publicar, em 1984, o texto que hoje aqui deixo. A cópia de um exemplar que sempre fez parte dos meus arquivos, mas que a certa altura perdi de vista e só agora recuperei. Foi escrito pouco tempo depois de a Serra da Gardunha ter sido devorada pelas chamas.Um relato que traduz o estado de alma de um dado momento.
ooOoo
Manhã de domingo, na torre o relógio a bater as 7.30 horas.
Com o sol de Agosto a fazer sentir já os seus efeitos, o grupo de Caminheiros da Gardunha, de que faço parte, inicia mais uma das suas caminhadas domingueiras.
Com um certo ar de tristeza no semblante, todos deixámos perceber que esta caminhada será bem diferente das anteriores. A disposição não é a mesma.
E não podia deixar de ser assim, pois as razões são de monta.
Com a encosta norte da elevação em que se situa a Pedra D'Hera bem verdejante à nossa frente, dir-se-ia que nada tinha mudado. A varanda — assim chamamos àquela pedra virada para a Cova da Beira – ali estava cercada do verde das castinceiras a perpetuar a presença do que foram as frondosas e dionisíacas matas de castanheiros que, além do mais, eram fecunda garantia da segurança e imobilização das terras.
A pedra nos convidava a longa permanência nela sentados, para apreciar a vastidão do fundo e berço da Gardunha, constituído pela bela vila do Fundão e para além dela, qual jardim multicor, toda a Cova da Beira com a sua imensa e rica diversidade pomífera e hortícola, salpicada de casario.
Contudo, transpondo esta elevação que nos separava do Vale do Alcambar, a visão dantesca que surge ante os nossos olhos faz com que todos nos deixemos dominar pela angústia, que atrofia a respiração já de si difícil pela presença de fumos e poeiras queimadas na atmosfera.
Tínhamos diante de nós, abrangida pela vista, o que fora a verdejante encosta que vai do Arrebentão até à Casa do Guarda da Floresta e agora se havia transformado numa mancha completamente calcinada pela acção do violento incêndio que, em jeito de catástrofe, sobre ela se abateu nestes dias.
Para lá do que os nossos olhos podiam ver, adivinhava-se o mesmo tipo de paisagem até aos domínios de Alpedrinha e Castelo Novo, já que a mancha florestal para lá se estendia, do mesmo modo que para trás do Arrebentão e na direcção do Souto da Casa e Ribeirinha ficara queimado o arvoredo de onde partira o fogo.
Como oásis no meio desta enegrecida paisagem, o Vale do Alcambar ali estava viçoso e de folhagem agitada pela brisa, como em saudação amiga — pinturesco vale, a respeito do qual alguém escreveu: "paraíso imbricado de fruteiras e azenhas primitivas, no tapete esmeraldino de mil courelas minúsculas».
Hoje a sua fisionomia está bastante alterada. Das azenhas, apenas resta uma ou outra construção com o seu traçado primitivo e as courelas então existentes viram o seu espaço aumentado, tanto por agregação como pela anexação de terras roubadas à encosta da Gardunha, com o fim de aproveitar a plantação de cerejeiras e destas o fruto de qualidade impar devido ao microclima aqui existente e para elas de todo favorável.
E é da sua floração que se obtém o mais deslumbrante espectáculo, com tanto de belo como de efémero. Com paralelo, apenas nos foi dado ver as amendoeiras em flor.
Obra de autênticos pioneiros no desbravar de terreno, os proprietários destas courelas de reduzidas dimensões — junto a Alcongosta — são crónicos negociantes da "caroça", como outros o são dos artefactos de verga, cuja matéria-prima lhes é dada pelas varas dos castanheiros ainda novos.
Este vale terá evitado a propagação do fogo para a encosta sul do monte da Pedra D'Hera e sobre o qual se encontra uma construção deixada por madeireiros que tempos atrás disformaram a sua paisagem ao fazerem corte raso de parte do pinhal que nele havia. Tal construção fora então por nós baptizada de "Abrigo dos Caminheiros da Gardunha".
E o episódio ocorrido com o Valdo, nessa ocasião não deixou de ser recordado. Foi quando, no acto de "arriar a calça", se lhe deparou uma carteira com umas dezenas de escudos e que logo foi considerada a condenação simbólica do madeireiro que andava a empobrecer a paisagem abatendo as árvores que nelas se encontravam. Verificava-se agora que tal condenação nem tivera razão de ser.
Prosseguimos a caminhada em direcção poente, passando nas quintas do Casal do Badana, hoje quase um povo com o seu complexo agro-pecuário e construções de apoio.
Dirigimo-nos ao monte do Picôto. Dali se avista a elevação da Senhora da Penha, penhasco de onde se vislumbra Castelo Branco em dias claros e baixo índice de humidade. Nele se encontra a gruta do Eremita e vestígios de construções que nada nos contam mas que a existência de umas espécies de cornijas de hábil trabalho muito nos surpreende.
Da sua vertente norte desce a ribeira da Gardunha em direcção ao Souto da Casa, depois de atravessar a "estrada real", que nos contam ter sido uma das vias de comunicação outrora existentes com direcção a S. Vicente da Beira.
Foi da margem esquerda da ribeira, onde esteve quase dominado, que o fogo se transpôs para a margem direita e pela encosta do monte de S. Gonçalo, em cujas abas se situa a capelinha da Senhora da Gardunha, rapidamente se encaminhou para o Arrebentão e dali em direcção a Alcongosta na sua marcha impiedosa de devastação.
Mas para além da margem esquerda e na direcção de S. Vicente da Beira, quilómetros e quilómetros se apresentam com a mesma desoladora configuração.
Já era do nosso conhecimento que 80 quilómetros quadrados de floresta haviam sido consumidos pelo fogo em cerca de cinco dias.
A serra da Gardunha mudara completamente de aspecto.
Por muito tempo ainda continuámos absortos na contemplação da paisagem.
Íamos fazendo conjecturas quanto ao montante dos prejuízos produzidos. Seriam incalculáveis, concluímos.
Mas se incalculáveis eram os materiais, irreparáveis eram os ecológicos. E esses eram para nós, sem dúvida, os mais angustiantes.
Somos dos que vemos a natureza por diversos ângulos. Amamo-la pela sua beleza, consideramo-la pela sua importância para o meio de vida de cada um e dela nos servimos para retemperar forças para a labuta quotidiana.
E a recordação do que alguém dissera um dia, ao ver uma projecção de diapositivos da Gardunha, vem-nos à lembrança:
— Tendes as mais belas paisagens que já vi e tendes oxigénio de cortar à faca. Sois ricos. Defendei tudo isso que é de valor inestimável.
Quanto nos embeveceu esse comentário e propositado conselho. Era de facto uma verdadeira riqueza que tínhamos e que agora num abrir e fechar de olhos nos fugiu.
Todos sentimos uma imensa raiva, gerada pela impotência de nada podermos fazer para evitar tal infortúnio, e desde logo o atirar de culpas para os responsáveis da pobreza que nos atingiu.
Mas a quem as assacar?
— Aos criminosos que ateiam o fogo?
— Aos que lhes pagam para o fazer?
— À brandura da Justiça que devia ser impiedosa para tais actos?
— Aos que governam e não têm criado os meios de protecção à riqueza natural do país ?
— Às forças de segurança e policiamento?
Todos as têm, pensamos nós. E só nos custa entender o quê e o porquê de tudo isto. Mas louvores também são de fazer, para além do que fica desta adversidade. Merecem-nos os anónimos bombeiros pela sua abnegada acção de combate às chamas e defesa de bens e vidas em perigo e pela luta contra a indiferença dos que têm responsabilidade de acompanhar a população atingida por esta tragédia e não o fazem, em contraste com a presteza que os leva a apresentar-se para as festas e comezainas.
Hoje estamos verdadeiramente tristes. Por nós e por todos os que vierem depois de nós.
Da paisagem que foi, fica-nos a recordação. Da paisagem que é, a certeza de que a saúde de todos nós baixara de qualidade.
Sem falar dos que jamais poderão viver, como viviam, à custa da riqueza florestal desaparecida nos 80 km2 agora devorados pelas chamas e cujo repovoamento leva décadas a fazer-se, e menos ainda das famosas e raras espécies florestais desaparecidas para sempre.
Regressamos a casa. A nostalgia acompanha-nos. Víramos muito e pouco de bom. A caminhada de hoje não deixara saudades.
Pelo calor do sol, abrasado ia também o nosso estado de alma.
Mas voltaremos. Muitas vezes, se nos for possível.
Tantas que nos seja dado dizer um dia:
— A Gardunha já é hoje o que era dantes!

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